Percebo-me pensando sobre a língua e o que a antecede, a construção antecedente à língua que a constrói e como que concomitantemente a língua nos constrói.

Entendi com clareza que R.E.S., ou isso que chamamos de “um grande artista” não fala a mesma língua que os demais. E isso não significa que necessariamente as palavras sejam outras, que os verbos sejam conjugados de maneira excêntrica, que a sintaxe seja ordenada de forma mais “livre”, mas toda a estrutura da língua é outra, e isso significa: toda a sua estrutura de apreensão da vida é outra. Assim como para um alemão pode não fazer sentido o “jeitinho brasileiro”, para um grande artista a orla de compreensão, apreensão, resposta à vida dada por um ser ordinário, comum, não faz sentido algum. Nossa língua é um DNA de quem somos, e mais, somos hoje prisioneiros dessa língua, se ela nos possibilita tais frases a serem articuladas, então isso significa que essa articulação faz parte do nosso sangue, de nossa epistemologia, de nossa história; somos completos prisioneiros da língua, e também, somos nós que a inventamos, e ela nos inventa.

Da mesma forma que a estrutura do japonês é outra, da mesma forma que o japonês ou o grego são intraduzíveis – não por não termos as mesmas palavras que eles, mas porque o nosso ser está estruturado de forma diferente, o que é intraduzível não é uma palavra, mas é a vida que passa por aquele que a profere.

Acho bastante significativo a nossa língua permitir a construção de uma frase como “a vida não faz sentido”. Acredito que a sintaxe disponível na nossa língua para tal elaboração já diz muito sobre a nossa doença e sobre as nossas dores. Claro que, Freud mesmo diria, a angústia é que constrói a neurose e não o contrário; então faço um paralelo nessa problemática ainda para complicar mais um pouco: a dor é que constrói a língua, a angústia é que inventa a língua, ainda que a língua nos aprisione. Logicamente, poderia então concluir que “nós nos aprisionamos?”

Pergunto-me se, para um esotérico, se para alguém como Madame Blavatsky teria alguma lógica a afirmação: a vida não tem o menor sentido. Sinto, que, de algum modo, tal afirmação expõe uma arrogância, uma prepotência do homem, uma prepotência ancestral, ontológica do homem em achar que está no comando. Acompanhando R.E.S., percebo que essa elaboração realmente não faz mais sentido para ele, mas não de forma demagógica, ou porque ele construiu uma obra, ou porque tem muitos alunos, muitos empreendimentos, e porque por isso não tem “tempo” para deixar tal coisa ser pensada. Não acho que seja por aí. Mas todas essas coisas provêm de uma vida estruturada justamente em torno de uma profunda consciência de insignificância, de humildade (apesar de todos esses termos serem definições de uma jovem que está construindo uma vida para ser dobrada, então provavelmente esses termos não sejam os melhores do seu ponto de vista), estão circunscritas por um saber de que não está no controle – a vida é o sentido, é o único sentido que temos, estamos querendo constantemente atribuir sentidos mundanos à vida, atribuir sentidos vulgares e muito menores à vida. Parece-me que se trata de uma questão lógica: realmente, dentro do tipo de sentido com o qual queremos entupir a vida, ela não terá, pois ela é muito maior que esse tipo de sentido; querer atribuir à vida um sentido vulgar fará com que a vida, desse modo, não tenha mesmo sentido. O sentido parece estar murmurando em nossos ouvidos dia e noite, basta acordar, basta inclusive estar dormindo, o mundo pode estar em guerra que o sentido da vida continuará murmurando. E mais, não hesito em pensar que as guerras fazem parte desse sentido, dessa lógica, dessa teia.

Parece-me mais que é uma questão de encontrar, de ouvir as pistas de sentido que a vida nos oferece. Retroceder. Nós é que somos arrogantes, o sentido da vida está em uma estrutura gramatical que é muito maior que a nossa; e por não a acessarmos, já concluímos que não há.

A língua que falamos hoje está correndo por esse afluente do sem sentido, está correndo por um afluente de uma construção que teme profundamente olhar para o outro, para o nosso vazio, nosso suposto “vazio de sentido” e ver nele o “brilho do que é verdadeiro”, como diria Beuys. É justamente nesse vazio que se encontra todo o sentido em latência, é nesse vazio que murmura o sentido.

Acredito que se tornar um artista seja entrar nessa linguagem, seja subverter as leis de uma língua imposta por um país, uma sociedade, um tempo, e com os recursos dessa língua, transfigurá-la, para que ela dialogue, para que ela se ajuste em uma língua que é muito mais sutil, na língua do sentido. O “sentido da vida”, poderia dizer, é a sua própria língua, é uma língua em si, possui seus códigos, suas leis, sua sintaxe, gramática… o lindo disso é que o vocabulário dessa língua, as palavras dessa língua são ordinárias, o vocabulário pode ser a subjetividade de cada ser humano, pode ser o display que seja: gastronomia, pintura, texto, malabarismo, engraxate, camponês, pouco importa, não há o display correto, inclusive, o display está constantemente querendo ser inventado. O display está todo por fazer, a humanidade estará sempre por fazer.

Mas esse sentido, essa língua a qual me refiro não se aloja no vetor dialético do sim e não, do ter ou não ter algo, da sanidade e da loucura. Esse sentido não se trata de uma oposição a algo, R.E.S. não faz uma oposição a um sistema, a um tempo, mas dentro desse tempo, dentro dos recursos que esse tempo oferece os transforma em outra coisa, devolve à ontologia do tempo o próprio tempo fugitivo, o presente que nos escapa, as possibilidades em latência, invisíveis aos olhos obstruídos por verdades que construímos e que nos foram impostas.

O que então me parece realmente grave é que os sentidos da vida foram todos impostos a nós; o rumo da vida parece ser um só, o rumo da vida parece já estar preestabelecido; as profissões já foram tachadas; a ordem é só uma; as relações seguem um script; a fala, o pensamento, o comportamento, a educação, todos já estão pautados por um roteiro desse tempo. Intuo, porém, que criamos todas essas verdades, pois não suportamos um grotesco vazio; não suportamos a deriva; não suportamos não estar no controle; então inventamos um falso controle através de nomes, rumos, profissões, conhecimento, receitas, scripts; enfim, um modelo de sociedade e de vida, um fim muito específico para a existência. (É mesmo desesperador).

A questão realmente me fascina, e acredito ter muito a ver com ter volume de vida; quem sabe aquele que tem volume de vida seja aquele que suportou destruir, arrebentar, assassinar todos esses supostos “sentidos” impostos por uma sociedade, um país, um tempo, uma classe social, e permanecer em um vazio de sentido, que não significa ser um sem sentido, não corre por esse afluente epistemológico; mas significa suportar um vazio e trabalhar em direção a poder ser apresentado pela vida o seu sentido. E assim, tecer os elos perdidos, em latência desse profundo sentido, sem autoria; deixar que a vida se crie através de nós; ser mesmo um agente da vida. Ou seja, ter volume de vida caberia então para aquele que está mesmo vazio, para aquele que tem espaço de manobra. Ironicamente, volume de vida só tem quem está vazio, pois assim tem espaço para manobrar a vida no mundo. Um mundo que na verdade, secamente, com uma luz tão forte e insuportável, é vazio desse sentido que estamos constantemente dando para ele. O mundo é cru. É de uma crueza insuportável. Mas é possível inventar dentro dessa crueza insuportável. Negociar com o insuportável dessa crueza, até que a crueza comece a se transformar em outra coisa; quem sabe essa outra coisa seja uma invenção. Por isso, digo que Rubens é um assassino. Um assassino de todo o sentido da vida que lhe é constantemente imposto. E, para não ser leviano, seu próprio corpo quer constantemente impor, já que, de algum modo, nosso corpo precisa se proteger de si mesmo. Mas o artista negocia com forças maiores para que o corpo possa finalmente voltar a conviver com si próprio. E só através desse assassinato e de um arsenal de ferramentas, Rubens faz nascer o novo, a partir do não ter nada, ou do ter algo. Por isso não tem limites, e que pode tudo. Pois é justamente ao não ter nada que se pode ter tudo.

Rubens é o prático que manobra a vida que o atravessa no mundo. Negocia um espaço no mundo para essa vida.


Anna Israel (São Paulo, 1989). É artista plástica, colecionadora e crítica de arte. Como artista, expôs em lugares pelo Brasil, e grande parte de seus textos críticos versam sobre a obra de Rubens Espírito Santo.


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Publicado por:Philos

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